Um muro até os céus
Falta de democracia real, perda de direitos sociais e desenvolvimento tecnológico alienado criam condições distópicas para a cisão da humanidade
por Nuno Ramos de Almeida — publicado 07/10/2014 18:04, última modificação 07/10/2014 18:49
No filme Elysium, do realizador sul-africano Neill Blomkamp, a elite da população terrestre vive numa gigantesca e paradisíaca estação espacial em que tudo está garantido, até a imortalidade, e a população da Terra vive em condições sub-humanas, num planeta destruído do ponto de vista ecológico e em condições de quase escravatura. A sua vida é permanentemente policiada por violentos robôs da polícia.
As funções do Estado limitam-se à manutenção da ordem, para melhor explorar esta raça de sub-humanos escravizada em que foi transformada a humanidade.
A ficção científica serviu sempre para poder falar do presente com roupas do futuro, para nos permitir ver melhor aquilo que hoje nos parece “normal”, mas que pelo seu desenvolvimento lógico nos levará a situações de irreversível injustiça. As distopias, como Prisioneiros do Poder, dos irmãos Arcady Strugatsky e Boris Strugatsky, 1984, de George Orwell, ou Nós, de Yevgeny Zamyatin, projetam no futuro aquilo que pode estar sendo forjado com o nosso silêncio.
A destruição do trabalho com direitos e como forma de participação e afirmação do humano acontece sob os nossos olhos. Os empregos na indústria, regulados pela negociação da contratação coletiva, foram substituídos pela precarização total do trabalho e pela destruição de qualquer laço estável e comunitário de vida. Em muitos países, os contratos sem prazo certo são transformados, nos call-centers, em contratos por semana, associados a metas cada vez mais altas.
Num livro notável, Chavs – A demonização da classe operária, o colunista Owen Jones demonstra que o trabalho com direitos na indústria da Grã-Bretanha foi substituído por trabalhos mal pagos nos serviços, em caixas de supermercados e call-centers, setores sem direitos e com baixas taxas de sindicalização. Com a perda progressiva de rendimentos e prestígio social de quem trabalha, assistiu-se à multiplicação por muitos dígitos dos salários dos administradores. Num estudo elaborado pela Confederação da Indústria Britânica, que agrupa os principais donos de empresas, intitulado “A conformação dos negócios nos próximos dez anos” defende-se: “A crise é catalisadora de uma nova era de negócios.” O documento pede a criação de uma mão-de-obra “flexível”, o que significa que as empresas devem empregar menos trabalhadores de seu próprio quadro e mais eventuais, que podem ser despedidos a qualquer momento sem encargos. A crise foi uma verdadeira máquina de guerra do patronato: na passagem do milênio, os executivos das empresas britânicas ganhavam 47 vezes mais que os seus trabalhadores; sete anos depois, ganhavam 94 vezes mais. Como dizia o multimilionário norte-americano Warren Buffett, com graça e em tom de crítica: “Há uma luta de classes. Fomos nós que a começamos e a minha classe está vencendo.”
Por todo o mundo “desenvolvido” assiste-se à criação de uma espécie de apartheid: por um lado, uma raça de super-ricos vivendo num mundo à parte, e por outro lado uma população sem direitos.
Um cenário de ficção científica que é abordado no último número da revista francesa Philosophie Magazine, num dossiê em que se revela que está planejada para 2020 a construção das primeiras ilhas artificiais. Nelas, os ricos viverão livres de Estado, constrangimentos sociais e da presença de pobres que não sejam seus criados. Bem-vindos ao deserto do real.
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